Por Leandro Resende
É só quem vive de salário que sabe o desafio que é começar e fechar o mês comprando tudo que tem de comprar com o dinheiro que sabe, antecipadamente, que vai ter no bolso. Com inflação sob controle, fica até fácil. Mas viver de salário em períodos inflacionários é que são elas. Muitos brasileiros já tinham até esquecido de como é desgastante lutar contra a corrida de altas de preços diárias ostentando no contracheque o mesmo salário o ano todo e a cada ida no supermercado, uma surpresa a cada gôndola.
Pois é, bem-vindo à nova realidade. Inflação chegou, estacionou e não tem hora para ir embora. E, esmiuçando o indicador, encontram-se detalhes, como, por exemplo, os dados de um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) sobre inflação por faixa de renda, que registrou aceleração dos preços em todas as classes pesquisadas no País, têm mostrado que a variável dói diferente em cada classe social e a pancada é bem maior para uns que para outros.
Existem duas realidades distintas – e nenhuma é boa. A do trabalhador, que sofre essa pancada da inflação sem chance de reagir – pois não é “dono” do seu salário, não define seu ganho mensal – e a do empresário, que consegue se blindar e, mesmo afetado pela alta nos custos de produção ou de compra dos produtos que revende, ainda consegue corrigir, mesmo que parcialmente, os preços dos produtos e serviços. Apanha na despesa, mas recupera parte da receita corrente – diferente do trabalhador, que na maioria, só mexe (sobe) a despesa.
Este estudo do Ipea aponta que a inflação para famílias mais pobres é 10 vezes maior que para mais ricas. O dado é do fechamento de 2020 e apesar de não ter concluído ainda este ano, sabe-se que não mudou muita coisa – pois a inflação em 2021 foi maior que no ano passado. A explicação para essa diferença no peso da inflação para famílias ricas e pobres está principalmente no aumento expressivo de preços de alimentos nos últimos dois anos.
Alimentação, habitação, transporte, educação e saúde representam mais de 80% das despesas de uma família mais pobre. São estes os grandes vilões da inflação atual. Para uma família de alta renda, estes custos de bens essenciais são menos representativos, não são eles que vão deixar o orçamento no aperto – ou seja, reclama, mas compra. Na casa da família mais pobre, a situação é outra: escolhe. Corta um pouco na comida, corta no remédio, atrasa o aluguel… e vai sobrevivendo.
Com os principais aumentos concentrados nestes itens, o orçamento arrochou e vários itens foram cortados da lista, explica o economista Cláudio Henrique. Ele fala que o empresário sofre de uma forma diferente o enfraquecimento da renda do trabalhador. “O primeiro sofre de imediato. O empresário vê seu negócio perder o fôlego aos poucos, independente do setor, pois o motor da economia vai freando como um todo. Uma hora atinge todos. O motor da economia sempre vai ser o bolso do consumidor.”
“Na situação atual, com a renda menor, é preciso escolher entre comprar menos ou se endividar. Complica para os dois lados, pois ao escolher reduzir na comida, a família fica menos nutrida; ao cortar o remédio, eleva riscos para saúde; mas também afeta a economia: farmácias e supermercados vão vender menos. Nos últimos dozes meses, o IBGE apontou queda de 0,6% do comércio em Goiás. Seguindo o exemplo: a indústria de alimentos e medicamentos, dois pilares do setor no Estado, vão desacelerar. Em dez meses fechados, o setor teve sete quedas e três altas. Efeito da inflação.”
COMPRANDO SEM PARAR
Mas, para algumas famílias, a inflação não parou o consumo. Mesmo com o preço praticamente tendo dobrado desde setembro de 2020, as vendas de carros premium, aviões, relógios e imóveis de luxo, entre outros, continuam nas alturas.
Segundo Adriane do Val, gerente da Reis Motors, revenda de carros premium seminovos em Goiânia, há mais procura do que veículos em loja para vender. “Os preços dos carros subiram, no último ano, de 70% a 90%, para todos modelos que vendemos. No entanto, o comportamento do consumidor também mudou. O preço maior não inibiu a procura. Pelo contrário, aumentou. O ticket médio que era na faixa de R$ 150 mil, hoje está na faixa de R$ 400 mil. Mas hoje falta carro premium para vender. Se tivesse mais, vendia. Não se consegue atender todos os clientes que chegam na loja”, disse ela.
Especialistas observaram que não ocorreu apenas a alta do ticket médio, mas também uma mudança no padrão do segmento de seminovos, ampliando o leque de carros premium mais vendidos, que há dois anos estava mais concentrado nos carros de entrada da BMW e Mercedes, para também Porsches e Land Rovers.
“A inflação afeta todos, mas o perfil do cliente de produto premium, como nossos carros, é aquele empresário ou uma pessoa que de alguma forma consegue corrigir sua renda no dia a dia, ajustando seu ganho à correção dos preços”, aponta Adriane.
O raciocínio da gerente Adriane está correto. Mas o economista Cláudio Henrique aponta que é importante o empresário se blindar parcialmente, ser cauteloso e não arriscar neste momento de instabilidade.
“Aparentemente se sente protegido e que até capitalizado – muitos acabam quebrando lá na frente. A economia está em desequilíbrio, a demanda do seu negócio pode desacelerar; custo do dinheiro sempre em alta; é bom medir se não está entrando no capital de giro e de investimento da empresa, ou até que ponto está comprometendo estes valores, para compra de imóveis, carros e viagens particulares, por exemplo. São custos que não voltam para o caixa e podem representar um risco maior para a principal fonte de renda da sua família. No primeiro momento não, pois parece que ter mais dinheiro entrando, mas essa é a armadilha.”
Mas não foi só nos carrões que o dinheiro que sobrou no bolso dos que têm um pouco mais foi gasto. Aviões, imóveis e objetos de luxo também estão na lista. Segundo Leandro Tadeu, gestor comercial da Quick Aviação, empresa goiana que faz manutenção, compra e revende aeronaves executivas, os aviões também tiveram altas fortes durante a pandemia.
“Todos os modelos de aeronaves no mercado de revenda sofreram reajustes, nos mais variados porcentuais, e mesmo com a alta, o mercado se mantém altamente aquecido, provocando também uma escassez de produto, certos tipos de aeronaves quase não se encontram hoje no mercado.”
A dificuldade e necessidade de locomoção de empresários durante a pandemia provocou uma procura maior para aquisição e troca de aeronaves, aponta Leandro. “Todos os perfis estão aquecidos, tanto para aquisições de novas ou de revenda, além do público que já estava prepa-rado para ingressar no mundo da aviação executiva, que acelerou o processo de compra.”
Leandro Tadeu aponta que a aviação executiva é mais do que uma fatia do setor de alto padrão. “O perfil é voltado para o trabalho. Antes de mais nada ela é uma ferramenta. Muitos dos empresários brasileiros usam a aviação executiva como meio para os seus negócios, isso faz com que se tome a decisão de ter ou de fazer um upgrade, baseado na necessidade e não somente no valor”, disse, destacando que todo tipo de aeronave executiva tem sua importância, e muito disso é decidido não só pelo valor monetário, mas também pelo tipo de missão.
“Aeronave mais adequada vai de acordo com o segmento, como aeronaves a pistão, turbo hélices ou jatos. Mas, de um modo em geral, aeronaves com Baron, Seneca, King Air, são aeronaves com altíssima procura”, destaca Leandro.
O agronegócio é puxador de vendas. O executivo fez uma simulação, em dólar, de uma aeronave que vende bem no mercado, levando-se em consideração o fato de que estamos sofrendo escassez de aeronaves. “Apesar de todos os setores estarem aquecidos, uma das aeronaves mais procuradas, como um King Air C90, ano 1998, que antes deste pico inflacionário, com boa disponibilidade de horas e em bom estado e procedência, seria comercializada em torno de US$ 1,2 milhão. Essa mesma aeronave hoje não seria negociada por menos de US$ 1,7 milhão”, estima. Se jogarmos em reais, o preço subiu quase R$ 3 milhões em um ano – e falta produto.
Já em setembro, matéria do Valor apontava que o mercado de luxo estava aquecido não apenas em Goiás, mas em toda Região Centro-Oeste. A inflação já não amedrontava os consumidores de alta renda destes Estados. Matéria aponta forte demanda por produtos de luxo, imóveis, carros, aviões e restaurantes caros – com destaque para Goiânia – e coloca o bom desempenho das gigantes do agronegócio e toda cadeia de riqueza que contribuíram para sustentar as boas vendas.
“Essa renda extra sempre existiu, mas não havia uma explosão dos preços e encurtamento da renda. Esse fenômeno destaca ainda mais quem consegue comprar hoje”, diz o economista Cláudio Henrique à Leitura Estratégica.
Vários índices apontam que imóveis e loteamentos da Região Centro-Oeste valorizaram mais que o dobro da inflação. Em Goiânia, tanto FlipZap quanto o Imobles mostram alta de dois dígitos nos primeiros dez meses do ano em média, com algumas regiões da cidade passando fácil de 20%. Mas o aumento dos valores é generalizado, não sendo reflexo da valorização de apenas um setor ou tipo de apartamento. A inflação da construção ficou em 16,4%, dando ganho real de pelo menos 4% no preço dos apartamentos de Goiânia.
Para o diretor da GPL Incorporadora, Guilherme Pereira Lima, o mercado imobiliário está aquecido e a inflação não tem sido a preocupação maior do consumidor. “O comprador de imóvel hoje procura segurança para seus investimentos. Temos casos de loteamentos que tiveram o dobro de valorização e casos de até o triplo em um médio prazo. Temos casos de venda de todo loteamento antes do pré-lançamento (Jardins Londres)”, disse Guilherme, observando que o momento se dá pelo comportamento do consumidor, que confia no mercado imobiliário.
O momento de inflação em alta não só movimentou o mercado de luxo como também criou uma certa expectativa sobre o comportamento do consumidor. É que o câmbio também explodiu com a desvalorização da moeda nacional. Assim, com dólar alto, as pessoas que fazem viagem de alto padrão para o exterior têm as despesas elevadas com primeira classe, vinhos caros, hotéis cinco estrelas e outros serviços. O foco da viagem tem sido mais lazer que compras, como aponta o empresário do mercado de luxo Flávio Lima, proprietário da Danglar Luxury Store, loja de joias e relógios de luxo no Flamboyant Shopping Center, agente oficial das marcas Rolex, MontBlanc e Tag Heuer.
“O mercado de luxo explodiu na pandemia, mesmo com preços maiores dos produtos, que ocorreu em todos setores. Já vinha em uma tendência de alta de vendas anterior. A Rolex tem produção anual hoje bem menor que a procura. Com demanda maior, tenta suprir a demanda, mas é crescente no mundo todo. MontBlanc e Tag Heuer, a mesma coisa. Hoje não tem estoque na loja, temos de comprar e esperar. O que chega, já chega tudo vendido”, diz o empresário. Um relógio lançamento da marca Rolex pode ultrapassar R$ 100 mil.
Flávio Lima diz que a procura cresceu bastante durante a pandemia. O empresário aponta questões também comportamentais, como não poder viajar por longo tempo (barreira sanitárias e quarentena) para comprar no exterior o produto destas marcas; elevação da despesa da viagem após a liberação de voos; o próprio medo da morte. “Com a doença, acabou que as pessoas se permitiram mais. Melhor viver o hoje, realizar seus sonhos, que são motivos fortes para crescer o mercado de consumo.”
Esse hiato no mercado de luxo, que o brasileiro sempre se destacou por ser um comprador avulso de viagem ao exterior, foi uma grande oportunidade para empresários do Brasil mostrarem diferenciais nos serviços de atendimento e conquistar este cliente, aponta Flávio.
“Em grande parte, pesquisas mostram que, estas compras vão continuar no Brasil. As diferenças de preços, quando têm, no mercado de luxo no Brasil e no exterior, são pequenas. A inflação ocorreu aqui e lá. O comprador de produto de luxo vai ter como comparar futuramente. Acredito que o brasileiro dê mais valor na viagem buscando melhor hospedagem, melhores voos, restaurantes melhores, spas, buscando mais com experiências e serviços, e menos compras de luxo. Isso ele tende a fazer no mercado interno. Além de tudo, ainda tem o risco de alfândega. Tudo isso é desnecessário.”
Publicado na Revista Leitura Estratégica Ed. 11, em dezembro de 2021